Opinião
Energia firme da região Nordeste
O Setor Elétrico deveria desconsiderar as afluências das décadas iniciais da série histórica às usinas da bacia do rio São Francisco
O planejamento da expansão e da operação do setor elétrico brasileiro, ou qualquer outro predominantemente hídrico, é dominado pela incerteza sobre as afluências futuras às usinas hidrelétricas (UHE). Tradicionalmente, se assume que as correspondentes séries históricas constituam a realização de um processo estocástico estacionário. Significa que embora não se possa saber qual será a afluência no próximo mês a qualquer UHE, é possível conhecer sua distribuição de probabilidades, que poderá depender da época do ano e das afluências pretéritas. Ao se assumir a hipótese de estacionariedade (HdE), admite-se que o futuro, embora incerto, seja probabilisticamente estável. Tudo se passa como se a Natureza estivesse “sorteando” eventos climáticos numa sofisticada roleta, porém sem mudar de roleta.
É evidente que a HdE não se sustenta numa escala de tempo geológica. Porém, até a alguns anos atrás parecia razoável aceitá-la como uma aproximação, limitada à escala de tempo de algumas décadas. Restava identificar as propriedades da “roleta”. Ou seja, identificar o modelo usado pela Natureza e estimar seus parâmetros. Tudo o que o que se dispõe para executar essa tarefa são as séries históricas de afluências. Oficialmente, todas essas séries começam em janeiro de 1931.
Como as medições fluviométricas de nível e de vazão para definição das correspondentes curvas-chave não eram em geral disponíveis em passado tão remoto, a série oficial é recheada de inferências feitas a partir dos poucos dados efetivamente medidos. Para complicar, as séries históricas oficiais são “naturais” e não as “observadas”. Trata-se da quantidade de água disponibilizada pela Natureza em certo ponto do rio, descontando-se a interferência humana. Para determiná-la, parte-se da vazão observada no ponto de interesse, sendo preciso “desfazer” todas as modificações antrópicas na bacia hidrográfica a montante. Por exemplo, operação dos reservatórios, evaporação e retiradas de água para irrigação. Inescapavelmente comete-se erros neste processo de cálculo das vazões naturais.
Na década de 1970, quando os primeiros modelos de otimização baseados em modelagem estocástica começaram a ser utilizados, a precariedade das informações hidrológicas não agradava os pesquisadores e planejadores do Setor Elétrico. Mas não havia alternativa para extrair alguma certeza da incerteza hidrológica. Quase meio século depois daqueles anos pioneiros, parece razoável indagar se faz sentido continuar usando séries históricas que remontam a passado tão distante e com tanta incerteza. Não seria mais prudente usar apenas as informações mais recentes?
Para responder essa questão, os autores fizeram uso do modelo Monalisa (Kelman, Kelman & Pereira, Energia Firme de Sistemas Hidrelétricos e Usos Múltiplos dos Recursos Hídricos, Revista Brasileira de Recursos Hídricos, 2004) num exercício para determinar deterministicamente a energia firme de cada década do Nordeste, considerando este sistema isolado dos demais. Utilizou-se a configuração do PMO/ONS de julho de 2019.
A figura abaixo mostra a evidente diminuição da energia firme do Nordeste, em décadas recentes. Há diversas possíveis explicações para o fenômeno, cuja enumeração transbordaria o espaço dedicado a esse artigo. É possível até que uma adequada gestão da água possa mitigar o fenômeno. Porém, diz o bom senso que o Setor Elétrico deveria desconsiderar as afluências das décadas iniciais da série histórica às usinas da bacia do rio São Francisco. A energia firme decenal diminuiria de 6,4 GWm para 6,0 GWm, se utilizássemos afluências a partir de 1951, e para 5,6 GWm, se a partir de 1971 (redução de 6% e 12%, respectivamente).
Uma redução da garantia física das UHE do Nordeste contribuiria para a reduzir o desequilíbrio entre a produção hidrelétrica total do Brasil (consistentemente menor que a esperada) e os contratos de venda de energia, provocando exposições financeiras às empresas donas destes ativos, o conhecido “problema do GSF”.
*Colaborou neste artigo Rafael Kelman
Jerson Kelman é professor da COPPE-UFRJ, ex-diretor geral da ANA e da Aneel e atual presidente do CA da Eneva
Rafael Kelman é diretor da PSR Energy