Opinião

MRE e mercados de água

Atualmente não há grandes incentivos para manter eficientes os usos da água e comercialização de outorgas pode ser um caminho

Por Jerson Kelman

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O Mecanismo de Realocação de Energia – MRE foi concebido para funcionar como uma espécie de fundo de amparo mútuo das usinas hidroelétricas. Cada usina tem o direito de comercializar não a quantidade de energia que efetivamente produza ao longo de um intervalo de tempo, que depende da hidrologia local, e sim uma percentagem da produção total das usinas do MRE, que é bem mais estável. A percentagem alocada a cada usina é proporcional à sua Garantia Física – GF, que mede a contribuição individual para o esforço coletivo de atender a demanda energética nacional em situação hidrológica adversa. Com esse arranjo, quando as usinas de uma particular região são afetadas por uma seca, são socorridas por usinas das demais regiões. E vice-versa.

Quando a quantidade de energia alocada a uma certa usina for menor do que tiver vendido, terá que comprar a diferença, pagando o preço do mercado de energia, o PLD. A isso se chama de “risco hidrológico”. Todavia, nos últimos anos, a frequência com que os integrantes do MRE tiveram que comprar energia para honrar seus contratos tem sido maior do que se poderia atribuir à variabilidade hidrológica. São falhas do MRE bem conhecidas, causadas pela implementação do mecanismo, não por sua concepção. 

Menos conhecidos são os “defeitos” do MRE com relação à atuação de seus integrantes na disputa pela água com outros setores usuários dos recursos hídricos, particularmente a irrigação. Quando a ANEEL organiza, em nome da União, o certame para concessão do recurso natural “potencial hidráulico” para a construção de uma hidroelétrica, cabe à ANA fazer a “declaração de disponibilidade hídrica”. Trata-se da previsão, ano a ano, do futuro uso consuntivo de água a montante da usina a ser construída. Cabe à União, por meio da EPE, calcular a GF da futura usina a partir dessa informação. O vencedor do certame recebe automaticamente da ANA a outorga de direito de uso da água compatível com a declaração de disponibilidade hídrica. 

A outorga tem valor econômico para quem a recebe porque oferece garantia (relativa, não absoluta) de acesso ao bem escasso. Todavia, o Direito não socorre os que dormem (dormientibus non succurrit jus). E muitos proprietários de hidroelétricas têm dormido de touca, exatamente devido ao conforto que lhes é assegurado pelo MRE. Não reclamam, ou pouco reclamam, quando usuários da água a montante passam a utilizar água, com ou sem outorga, em quantidade superior ao estabelecido na declaração da ANA. 

Essa moderada combatividade pode ser explicada pelo “efeito carona”, induzido pelo MRE: a receita da usina sob “ataque hídrico” não é em geral afetada porque a GF não é diminuída mesmo quando ocorre aumento do uso consuntivo de água à montante do empreendimento. Trata-se de situação análoga à que ocorre nos prédios onde há uma única conta de água dividida entre todos os condôminos: não há estímulo para uso parcimonioso da água. No caso das usinas hidroelétricas, o “efeito carona” causa degradação da segurança operativa e uma repartição incorreta da produção coletiva, com prejuízo para os demais integrantes do MRE. 

O PL 495/2017, em discussão no Congresso Nacional, admite a comercialização de outorgas. Morganna Capodeferro simulou esse instrumento econômico no caso da bacia do rio São Marcos, onde a cada ano aumenta o uso da água para irrigação, afetando a capacidade de produção de energia elétrica em toda a cascata, da usina Batalha até Itaipu. Em sua dissertação de mestrado Potencial Econômico de Mercados de Água (COPPE, 2020), definiu a alocação ótima da água, que depende do custo marginal de operação (CMO), do preço de cada produto agrícola e do respectivo consumo d’água. Observou que em alguns anos o melhor uso da água foi no setor elétrico e em outros no setor agrícola. Conclusão: um mercado de outorgas permitiria a expansão da agricultura irrigada e alocaria a água de forma eficiente.

Jerson Kelman é professor da COPPE-UFRJ, ex-presidente da ANA e ex-diretor-geral da ANEEL

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