Opinião

Prestação e Faturamento de Serviços Essenciais em Tempos Excepcionais do Covid-19

Por Diogo Lisbona

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A pandemia do Coronavírus (Covid-19) impõe realidade sem precedentes ao mundo contemporâneo. O objetivo de “achatar a curva” de casos justifica o isolamento social como solução de curto prazo, frente a capacidade restrita dos sistemas de saúde para atender demanda simultânea crítica e imprevisível.

Durante a quarentena, apenas atividades essenciais são mantidas, sobretudo a provisão de serviços públicos como eletricidade, água e gás canalizado (utilities). A hibernação econômica-social interrompe fluxos de mercadorias, receitas e rendas, comprometendo severamente a capacidade de pagamento (affordability), incluindo as faturas dos serviços essenciais. 

A hecatombe demanda ação estatal imediata para amparar a população vulnerável e dar fôlego momentâneo às empresas. Vultosos pacotes de ajuda foram anunciados tanto por países com elevada rede de proteção social, como a França; quanto por países com menores salvaguardas, como os Estados Unidos. Adicionalmente, também são adotadas medidas paliativas sobre as faturas e a continuidade de fornecimento das utilities em tempos excepcionais, como ilustram experiências europeias.

Na Itália, a Autoridade de Energia, Redes e Meio Ambiente (ARERA) suspendeu a interrupção por inadimplemento do fornecimento de eletricidade (clientes da baixa tensão), gás natural (consumo inferior a 200 mil m³/d) e água (todos os clientes), entre 10 de março e 3 abril, já estendida por 15 dias úteis. Também foi autorizado parcelamento sem juros, mediante solicitação, com prestações não inferiores a 50 euros. Se o faturamento for menor que o previsto, as distribuidoras de eletricidade podem pagar até 80% dos encargos gerais do sistema (incluindo tarifa de acesso) e as de gás natural 90%. O regulador ainda suspendeu o pagamento das faturas até 30 de abril para 11 municípios da “zona vermelha” (Lombardia e Vêneto). 

Para fazer frente às medidas excepcionais, foi destacado um fundo de 1 bilhão de euros da Caixa de Serviço Energético e Ambiental (CSEA). Instituída na década de 1960 para equalização tarifária, a Caixa atualmente administra contas regulatórias sob tutela da ARERA. Para acessar a ajuda, os comercializadores dos municípios da zona vermelha devem comprovar criticidade financeira, isto é, perda superior a 3% do faturamento total em relação aos últimos 12 meses.

Na França, a “trégua de inverno” garantida por lei, que vigora entre 1º de novembro e 31 de março, foi estendida a 31 de maio. Nesse período, é proibida a expulsão de locatários e vedado a fornecedores de eletricidade, aquecimento e gás, a interrupção por inadimplemento dos domicílios principais dos consumidores residenciais – já o fornecimento de água não pode ser interrompido a qualquer tempo. A lei permite a redução da potência da eletricidade fornecida, salvo para consumidores com tarifa social.

A lei francesa de emergência concedeu às microempresas beneficiárias do Fundo Solidário público – instituído por três meses, prorrogáveis –, o direito de diferir e parcelar sem juros, por seis meses, o pagamento de aluguel e de faturas de serviços essenciais. A lei também vetou a interrupção de fornecimento, vedando a redução da potência de eletricidade. Adicionalmente, o Regulador de Energia da França (CRE) suspendeu a aplicação de tarifas dinâmicas de eletricidade mais onerosas, geralmente aplicadas durante o inverno.

Em Portugal, a ERSE (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos) estendeu o prazo usual para interrupção por inadimplemento por 30 dias, prorrogáveis. Atualmente, o corte por inadimplemento só pode ocorrer após aviso prévio de 20 dias (ou 15 dias úteis para clientes vulneráveis). O regulador permitiu ainda o pagamento parcelado sem juros, mediante solicitação; e estimula a autoleitura para evitar estimativas. A inadimplência será temporariamente suportada pelos operadores das redes (EDP), que devem parcelar a cobrança das respectivas tarifas de acesso.

Desde 2016, a inclusão no cadastro da tarifa social em Portugal passou a ser automática, ampliando a base de 170 para 800 mil consumidores (13% do total). Como há separação entre distribuição e comercialização, o desconto é realizado na tarifa de acesso às redes – o mercado livre já alcança 92% da energia comercializada. Atualmente, o desconto social corresponde a 33% da tarifa do mercado regulado. O custo é suportado pelos geradores, na proporção da potência instalada.

O mercado ibérico de eletricidade (MIBEL), seguindo tendência mundial, assiste à queda dos preços spot – tanto pela redução da demanda com a pandemia, quanto pela queda dos preços de gás em meio à crise concomitante do petróleo. A redução nos preços no mercado atacadista é repassada aos consumidores no varejo – nos mercados livre e regulado, cuja tarifa já sofreu redução de 3% em Portugal.

Na Espanha, decretos-lei emergenciais suspenderam o corte por inadimplemento de eletricidade, gás e água dos consumidores residenciais; proibiram aumentos nos preços do GLP nos próximos seis meses; e permitiram a pequenas empresas e autônomos suspender ou alterar contratos de fornecimento sem penalidades, e ainda solicitar diferimento e parcelamento das faturas por seis meses. Os comercializadores também diferem o pagamento respectivo das tarifas de acesso às redes e dos impostos incidentes, podendo acessar linhas de garantias abertas pelo Estado para solicitar financiamento privado à perda de receita.

Em tempos excepcionais, as experiências europeias apontam para medidas paliativas de bom senso: tratamento especial a vulneráveis; suspensão de corte por inadimplemento; e diferimento com parcelamento de débitos. Enquanto se garante o fornecimento de serviços essenciais e se mitiga a inadimplência com vultosas transferências de renda à população, o funcionamento dos mercados de energia acomoda a queda do consumo, transmitindo o ajuste por toda a cadeia. 

No Brasil, a ANEEL vetou, por 90 dias, a interrupção por inadimplemento de consumidores residenciais; estendeu prazos processuais; flexibilizou intervalos de leitura, permitindo autoleitura ou estimativa pela média; postergou reajustes tarifários; e autorizou o repasse antecipado de fundos para alívio futuro de encargos (R$ 2 bilhões).

Adicionalmente, a Medida Provisória nº 950/2020 isenta, por 3 meses, o pagamento das contas dos beneficiários da tarifa social (9 milhões, cerca de 13% do total) pelo consumo de até 220 kWh/mês. O tesouro aportará R$ 900 milhões na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), mas a isenção deve alcançar R$ 1,2 bilhão. A MP também prevê encargos tarifários futuros para custear as medidas a serem tomadas para compensar a perda de receita das distribuidoras.

O Brasil acompanha as medidas usuais de alívio durante a crise, mas não definiu planos de diferimento e parcelamento das faturas. Se por um lado, confere isenção à parcela mais vulnerável da população; por outro, sinaliza a cobertura de custos para além da inadimplência, compensando a sobrecontratação de energia do mercado regulado com aumento tarifário futuro, o que comprometerá ainda mais a capacidade de pagamento após a crise.

Diogo Lisbona Romeiro é economista, Doutor pelo Instituto de Economia da UFRJ, e pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV (FGV CERI).

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