Opinião

Gás Natural: ficaremos com uma abertura inacabada?

Embora a Nova Lei do Gás tenha trazido avanços, seus efeitos ainda são modestos. Quase nenhum tópico relevante para a abertura do mercado foi regulamentado

Por Edmar de Almeida

Compartilhe Facebook Instagram Twitter Linkedin Whatsapp

Co-autor: Felipe Freitas da Rocha*

Ao longo de quase três décadas, o mercado de gás natural brasileiro tem passado por um processo de abertura. Esse processo iniciou-se com as Emendas Constitucionais nº 5 e 9 de 1995, que permitiram a contratação de empresas privadas para a realização das atividades de exploração, produção, importação, exportação, transporte e distribuição. Logo depois, a Lei nº 9.478/1997 (Lei do Petróleo) estabeleceu novas normas para setor de óleo e gás, regulamentando, entre outras coisas, a quebra do monopólio da Petrobras. No entanto, a Lei do Petróleo tratou o gás natural como um derivado do petróleo e não como uma fonte primária de energia e, desta forma, não considerando as especificidades da indústria do gás natural.

Assim, em 2009, foi decretada a Lei nº 11.909/2009 (Lei do Gás) direcionada especialmente às atividades de transporte, embora também tenha abordado as atividades de processamento, estocagem, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural. Embora a Lei do Gás tenha trazido avanços em relação a Lei do Petróleo, ela não foi suficiente para aumentar a concorrência na indústria do gás natural.

Muitos estudos com o objetivo de identificar os motivos para essa falta de concorrência foram realizados ao longo dos anos que sucederam a publicação da Lei do Gás e do seu decreto regulamentador (Decreto 7.382 de 2010). Nesse contexto, surgiram o Programa Gás para Crescer e o Programa Novo Mercado de Gás, com suporte de diversas Notas Técnicas publicadas pela ANP e estudos da Agência Internacional de Energia.

Dentre os principais problemas identificados para falta de concorrência estavam:

i) a concentração da oferta às distribuidoras na Petrobras;

ii) a falta de separação de propriedade entre os transportadores e os demais agentes da cadeia do gás natural (i.e., a Petrobras era proprietária das principais transportadoras – NTS, TAG, e TBG);

iii) a ausência de mecanismo para cessão compulsória de capacidade (i.e., a Petrobras tinha contratada toda a capacidade disponível de transporte);

iv) a falta de obrigatoriedade de acesso de terceiros às infraestruturas essenciais (i.e., a Lei do Gás não obrigou a Petrobras a conceder acesso as infraestruturas de escoamento e processamento);

v) o monopsônio da Petrobras na aquisição do gás natural (i.e., a Petrobras possuía participação em 20 Distribuidoras, através das suas subsidiarias Gaspetro e BR Distribuidora).

Isso significava que a Petrobras permanecia com o poder de fato de monopólio em todos os elos da cadeia. E também expôs a necessidade de revisão da regulamentação vigente para se obter uma maior abertura do mercado gás.

No entanto, não houve consenso à época para aprovação de uma nova lei. Dessa maneira, buscou-se mudar a interpretação de aspectos da Lei do Gás através da implementação de um novo decreto (i.e., o Decreto nº 9.616/2018). Além disso, com objetivo de encerrar duas investigações por abuso de posição dominante no mercado de gás natural, a Petrobras e o Cade assinaram o Termo de Cessação de Conduta (TCC) em julho de 2019.

Os termos do TCC focaram em solucionar os principais problemas identificados para a falta de concorrência no mercado de gás natural. Ou seja, o TCC impôs a independência dos transportadores em relação à Petrobras, ao exigir a venda de suas participações nas transportadoras, incluindo NTS, TAG e TBG. Obrigou a desverticalização da Petrobras no setor de distribuição através da venda da sua participação na Gaspetro. Instituiu mecanismo para cessão compulsória de capacidade da Petrobras na NTS e TAG, exigindo a disponibilização de capacidade para novos carregadores. Obrigou a Petrobras a conceder acesso a terceiros às suas infraestruturas de escoamento e processamento (incluindo o arrendamento do Terminal de GNL da Bahia) e proibiu a empresa de adquirir gás de terceiros.

Nessa mesma época, a Petrobras estava implementando seu plano de desinvestimento, sendo uma resposta à crise financeira que a empresa estava vivendo desde 2015. A Petrobras buscava reestruturar seu portifólio de ativos para focar sua atuação na exploração de campos do pré-sal.

Assim, a empresa alienou diversos ativos do setor de gás natural. Entre os mais importantes vale destacar a venda da sua participação de 49% na Gaspetro em 2015 e a venda dos 90% da NTS e da TAG em 2017 e 2019, respectivamente.

Além disso, a Petrobras vendeu campos em terra de gás natural, incluindo em alguns casos as infraestruturas de escoamento e processamento associadas a esses campos. Diversos campos foram adquiridos na região Nordeste pela 3R Petroleum, Origem Energia, PetroRecôncavo, incluindo duas UPGNs (i.e., Pilar e Guamaré).

O TCC, em conjunto com os desinvestimentos da Petrobras, iniciou uma nova etapa no mercado brasileiro de gás natural. Diversas empresas ingressaram na comercialização do gás natural, como por exemplo a Galp, Shell, Equinor, 3R Petroleum, Origem Energia, PetroRecôncavo. Para isso, muitas delas acessaram as infraestruturas de escoamento e processamento da Petrobras e usufruíram da capacidade de transporte disponibilizada pela empresa na NTS e TAG.

Todo esse aperfeiçoamento da abertura do mercado de gás brasileiro foi institucionalizado pela Lei nº 14.134/2021 (Nova Lei do Gás), decreta em abril de 2021. Entre outras coisas, essa lei formalizou o Modelo de Entrada e Saída para a aquisição de capacidade de transporte, o conceito de independência do transportador e do distribuidor, o acesso de terceiro às infraestruturas essenciais e o Mercado Organizado de Gás.

A Nova Lei do Gás também exigiu a transparência das atividades de midstream. Além disso, essa lei concedeu mecanismos para a ANP prevenir práticas anticompetitivas e estimular a competitividade no mercado de gás natural. Isto é, essa lei permite que a ANP adote: i) medidas para cessão compulsória de capacidade de transporte, escoamento e processamento (Capacity Release); ii) programa de venda obrigatória de gás natural de comercializadores que detenham elevada participação no mercado (Gas Release); e iii) medidas para restringir a venda de gás natural na “boca do poço”.

Embora a Nova Lei do Gás tenha trazido avanços consideráveis em relação a legislação anterior, seus efeitos sobre o mercado de gás brasileiro ainda são modestos. Isso porque quase nenhum tópico relevante para a abertura desse mercado foi regulamentado.

A Nova Lei do Gás conferiu à ANP a responsabilidade de regulamentação de diversos tópicos. Entende-se que a agenda regulatória da ANP é extensa, mas a agência somente publicou uma única resolução pertinente à abertura do mercado de gás até o momento (i.e., a RANP 961/2023, que simplifica a contratação de capacidade de transporte).

Ressalta-se que vem ocorrendo atrasos sucessivos na agenda regulatória da ANP. Um relatório do Tribunal de Contas da União (Acórdão 817/2024) apontou que uma das causas para isso seria a insuficiência de recursos humanos da ANP.

A partir de 2023, o novo Governo do Presidente Lula mudou o foco da discussão no setor de gás natural da reforma e abertura para uma discussão sobre aumento da oferta e redução dos preços do gás. O programa Gás para Empregar criou expectativas de criação de mecanismos extramercado para viabilizar uma redução dos preços no curto prazo, tais como:

i) oferta de gás via PPSA a preços mais baixos para segmentos estratégicos da indústria;

ii) criação de um mecanismo de swap de gás por óleo entre os produtores do pré-sal e a PPSA, que viabilizaria o repasse de grandes volumes de gás para a PPSA;

iii) controle sobre a política de reinjeção de gás da Petrobras;

iv) algum tipo de controle sobre as tarifas de escoamento e processamento de gás da Petrobras.

Estas medidas ainda estão sendo avaliadas pelo governo (o relatório final está pronto, mas não foi ainda aprovado pelo CNPE), portanto não se sabe ao certo quais medidas serão lançadas pelo programa Gás para Empregar.

Entretanto, os sinais são claros de que a abertura e o aumento da competição no mercado de gás deixaram de ser o foco da política para o setor. Além da quase paralisia da ANP na implementação da agenda regulatória da abertura, assistimos o Cade voltar atrás no seu programa TCC com a Petrobras, ao autorizar a empresa a não mais vender sua participação na TBG.

Ou seja, ao que parece, a visão do governo atual para o setor é manter a abertura inacabada, com a Petrobras permanecendo com sua participação atual de cerca de 75% na oferta de gás ao mercado atacadista e um mercado livre de gás para alguns segmentos da demanda, enquanto se criam políticas e mecanismos para que alguns segmentos específicos da demanda (Fertilizantes, por exemplo) recebam gás carimbado a preço mais baixo que o preço de mercado.

Pensando no futuro da indústria do gás em um contexto de abertura inacabada, é fundamental se avaliar o impacto de tal cenário para os investimentos no setor de gás.

  • Qual seria o apetite da Petrobras para realizar investimentos no setor tendo que arcar sozinha com o gás carimbado?
  • Qual seria a percepção de risco dos atores privados para realização de investimentos no setor tendo em vista o poder de mercado da Petrobras com 75% do mercado?
  • Não haveria um risco de caminharmos para o contexto similar ao do segmento do refino onde nem a Petrobras investe na expansão do setor, nem o setor privado por receio do poder de mercado da Petrobras?

É muito importante responder às perguntas acima. É compreensível a impaciência dos stakeholders da demanda do gás com a lentidão para que a abertura resulte em preços de gás mais competitivos. Da mesma forma, é frustrante para autoridades energéticas ter que trabalhar para implementar uma agenda que só gera efeitos em um horizonte muito maior que o ciclo político das eleições.

É fundamental ter claro que a competitividade do gás no Brasil não será obtida de forma sustentável sem investimentos robustos na cadeia do gás natural, em um contexto de abertura de mercado e de uma pluralidade de atores. Portanto, é fundamental que as autoridades energéticas e os stakeholders tenham compromisso com os princípios pactuados para a abertura do mercado nos últimos 10 anos.

Demonstrar compromisso com a abertura do mercado de gás passa por criar condições para que a ANP implemente a agenda regulatória para regulamentar a Lei do Gás. Passa também por uma discussão sobre o futuro da concentração da oferta de gás no Brasil. Ou seja, uma discussão séria, envolvendo ANP e as agências de defesa da concorrência, sobre qual seria o nível de concentração desejável para evitar abusos de poder de mercado por parte do agente dominante. Enfim, passa por fazer cumprir aquilo que já está definido na Lei do Gás.

* Felipe Freitas da Rocha é pesquisador no Instituto de Energia da Puc-Rio (Iepuc)

Outros Artigos