Opinião

O atraso brasileiro entre os mercados competitivos de gás

ANP e Cade precisam tomar medidas efetivas para reduzir a hegemonia da Petrobras, como estabelece resolução do CNPE e segundo as boas práticas internacionais

Por Bruno Armbrust

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É sempre saudável olhar para as referências internacionais para fundamentar questões em mercados tão globais como é o de gás natural. A análise de boas práticas em outros países, aliás, é uma das premissas de resolução tomada em abril de 2022 pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), a de nº 3/2022, um ano depois da Nova Lei do Gás (Lei 14.134, de 2021). Naquela ocasião, o CNPE fixou as diretrizes estratégicas para o desenho do novo mercado de gás natural, os aperfeiçoamentos de políticas energéticas voltadas à promoção da livre concorrência nesse mercado e os fundamentos do período de transição.

Um mercado de gás saudável, concorrencial, requer um mercado spot líquido, que proporcione a comercializadores e consumidores maneiras efetivas de gerenciar seus balanços e o risco de mercado, reduzindo barreiras de entrada de novos competidores na busca da esperada e necessária competição ‘gás x gás’ no Brasil.

Vale olhar para os bons exemplos do exterior. Na Europa, a abertura do mercado de gás na União Europeia (EU) começou em 1998, quando a 1ª Diretiva 1998/30/EC introduziu uma série de normas comuns para todos os países membros, tendo como ponto central a introdução de um ambiente mais concorrencial.

Cinco anos mais tarde, em 2003, foi publicada uma nova Diretiva, a 2003/55/EC, visando acelerar a abertura de mercado. Esse processo, é verdade, teve muitas resistências em países como a Espanha e Itália – como se viu, respectivamente, com o grupo Gas Natural Fenosa, atual Naturgy, e ENI. Nesses dois países, o aumento da competição passava pela redução da alta concentração existente no mercado.

Aqui no Brasil, a Nova Lei do Gás avançou em alguns pontos. Mas ainda estamos muito distantes do que seriam as boas práticas internacionais.

A Petrobras ainda detém cerca de 75% do mercado de gás. E não é preciso muito esforço para saber que será lento o aumento da oferta por intermédio do crescimento da produção interna e que, no curto prazo, os terminais de GNL, como os inaugurados pela New Fortress, o TRSP e o Terminal de Sergipe, são os únicos elementos que podem conferir uma maior concorrência e fazer a Petrobras baixar seu preço.

Isso fica muito claro em recente entrevista do diretor da Petrobras, Maurício Tolmasquim, segundo o qual a redução de preços anunciada recentemente pela Petrobras tem relação com o aumento da competição com terminais privados de GNL.

A avaliação do grau de abertura de um mercado de gás é dada pelo nível de concorrência, do nível de preços e da liquidez do mercado. O nível de concentração de mercado na UE é medido pelo indicador Herfindahl-Hirschman Index (HHI). No entanto, outros indicadores também são utilizados como: taxa de rotação, volume de gás nos pontos de entrada e saída, diversificação de origens de gás no sistema, índice de oferta residual etc.

Observando todos esses parâmetros, vemos que ainda estamos muito distantes do que seria uma efetiva e correta abertura do mercado de gás e, assim, é necessário que a ANP estimule projetos que aumentem a concorrência. Também é necessário que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) acompanhe atentamente qualquer eventual tentativa de criação de barreira ao aumento da concorrência no mercado de gás no Brasil.

Na Europa há exemplos de ações contra o abuso de posição dominante. Um deles vem da Itália. Nesse país, a Autoritá per l’Energia Elettrica e il Gas da Italia (AEEG) - que tem a responsabilidade de garantir a independência e neutralidade na gestão das atividades em regime de concessão ou autorização consideradas essenciais para o desenvolvimento da concorrência - aplicou, em fevereiro de 2006, uma multa recorde na ENI por obstaculizar a concorrência e ainda a obrigou a aumentar em cerca de 10% a capacidade de transporte de gás argelino em favor de outros comercializadores.

Na Espanha não foi muito diferente: a Comissão Nacional de Mercados e Concorrência (que lá incorpora funções similares às do Cade) impôs uma série de medidas visando a desconcentração do mercado de gás, dentre outras a venda da participação da Gas Natural Fenosa – atual Naturgy, na Enagás que realiza a movimentação do gás nos gasodutos de transporte.

Projetos como os dos terminais de GNL de São Paulo, Santa Catarina e Sergipe surgem como elementos de extrema importância para aumentar a competição no mercado de gás no país, sempre que interligados aos gasodutos de distribuição e de transporte, e deveriam ter por parte dos órgãos reguladores todos os estímulos e facilidades.

Nesse contexto, a ANP colocar qualquer tipo de dificuldade ou condicionante para autorizar a operação de um terminal de regasificação, como a questão que envolve o projeto Subida da Serra em SP, é totalmente incompreensível, causando uma perturbação indesejável nesse momento em que se necessita uma maior competição no mercado de gás.

A abertura de mercado, como se viu no velho continente, é positiva. Na Espanha, a Naturgy, que chegou a ter mais de 80% do mercado de gás, comercializa na atualidade cerca de 28,0% do volume total, sendo que os três maiores comercializadores somam 55%. Na Itália, a ENI tem 16% do volume total de gás comercializado, com os três maiores totalizando 44%. Os dois maiores comercializadores têm quase o mesmo market share.

Outro bom indicador para avaliar como a abertura de mercado foi importante nos dois países europeus é o HHI, indicador adotado por autoridades antitruste da maioria das jurisdições. Um HHI acima de 2.500 indica um mercado com elevada concentração e baixa competição. Na Espanha, o HHI está em 1.376; na Itália, 807. Números que, em ambos os casos, significam que o mercado de gás tem elevada competição. No Brasil, esse indicador está em cerca de 7.000. Se olhamos esse indicador apenas no Estado de SP, onde se insere o TRSP, esse indicador é ainda maior, superando a marca de 9.000.

Para exemplificar o impacto da entrada em operação do TRSP, apenas com 50% de utilização de sua capacidade de regasificação, o HHI do país seria reduzido em quase 2.000 pontos e o de SP seria reduzido à metade. Fica claro que a entrada em operação de novos terminas de GNL abrem um novo e saudável horizonte para reduzir a concentração e aumentar a competição no mercado de gás no país com benefícios aos consumidores e ao custo país.

Seguindo a resolução 3/2022 do CNPE, que orienta a adoção das boas práticas, a ANP deveria estabelecer um objetivo no médio e longo prazo para se alcançar um HHI abaixo de 2.500. Para isso, a ANP deverá implementar ações visando que o market share atual da Petrobras, tenha uma redução expressiva, incentivando que existam pelo menos 3 ou 4 comercializadores com cotas de mercado representativas, assim como ocorre em países onde há competição. E para se conseguir isso é necessário um programa de Gas Release dos contratos de gás da Bolívia e dos terminais de GNL da Petrobras, assim como proibir a Petrobras de contratar gás de terceiros.

Temos visto sinais recentes muito preocupantes para quem espera um processo de abertura continua, efetiva e saudável do mercado de gás no país. Os órgãos reguladores, ANP e Cade precisam atuar com foco nas boas práticas internacionais, como estabelece a resolução nº 3/2022 do CNPE, como também, estarem atentos para evitar que a política comercial do agente dominante venha a condicionar o futuro do mercado de gás no país.

 

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