Opinião

O que a Alemanha nos ensina sobre o futuro das renováveis

A parceria estratégica entre Brasil e Alemanha, recentemente renovada, pode ser um catalisador importante para essa transição

Por Thiago Bao Ribeiro

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Imagine uma pequena vila na Alemanha que, com apenas 2.600 habitantes, produz quase cinco vezes mais energia do que consome. Parece um cenário de ficção científica, mas essa é a realidade de Wildpoldsried, na Bavária. 

Entre os dias 12 e 21 de junho de 2024, tive a oportunidade de visitar essa vila e outras plantas de geração de energia na Alemanha. O que vi e aprendi lá pode ser muito útil para o futuro das energias renováveis no Brasil. 

Neste artigo, vou compartilhar minha experiência e as lições valiosas que podem ser bem aproveitadas no setor energético brasileiro.

A vila de Wildpoldsried

Wildpoldsried é um município na região do Oberallgäu, na Alemanha, que decidiu, há 18 anos, investir em alternativas sustentáveis de energia. Com energia fotovoltaica, cinco instalações de biogás, 11 turbinas eólicas, um sistema hidrelétrico, além de sistemas de aquecimento de biomassa e geotérmicos, a vila se tornou um exemplo de autossuficiência energética. 

A decisão do conselho local de investir em energias renováveis foi motivada pela necessidade de proteger os recursos hídricos e reduzir a dependência de combustíveis fósseis e energia nuclear, uma vez que essas fontes de energia, não intermitentes, são fundamentais para a segurança energética da Europa.

No entanto, por outro lado, o continente europeu sofre com diversos conflitos que colocam em risco essa segurança, criando a necessidade de inovar no segmento de energias renováveis.

Política energética alemã e os investimentos comunitários em renováveis

A política governamental alemã oferece incentivos para a redução de custos e a promoção de energias renováveis. Na Alemanha, quem gera sua própria energia pode vender o excedente para a distribuidora através do sistema de feed-in tariff, onde a distribuidora remunera o consumidor por kWh injetado na rede. Isso mesmo, remunera e não apenas acumula crédito.

Esse modelo incentiva a produção de energia renovável e proporciona um retorno financeiro direto aos produtores.

Durante minha estada, visitei diversas plantas de geração de energia solar, eólica e de biogás metano. Em Wildpoldsried, a comunidade consome 6 MW de energia e produz 48 MW, vendendo o excedente e distribuindo o retorno do investimento entre os investidores. A vila agora produz 469% mais energia do que necessita, gerando 4 milhões de euros em receitas anuais e reduzindo sua pegada de carbono em 65%.

A população de Wildpoldsried criou um modelo de investimento por meio de cotas, muito parecido com o modelo que utilizamos no Brasil para participação financeira em grandes projetos de geração distribuída. Esse modelo não é aberto para investidores externos, somente é permitido que moradores da vila apliquem seus recursos nos projetos de energia renovável. Todo lucro é repartido entre eles, proporcionalmente às cotas. 

Esse modelo poderia ser replicado no Brasil para condomínios verticais e horizontais. É possível que comunidades se organizem para produzir a sua própria energia, compartilhando a energia gerada entre os condôminos investidores e cedendo o excedente para outras unidades consumidoras, sendo remunerados pelo aluguel dos equipamentos de geração. 

O Marco Legal da Geração Distribuída, instituído pela Lei 14.300/2022 permite esse tipo de investimento e compartilhamento comunitário da energia gerada.

Intersolar Europa: inovação e tendências

Nos dias 19 a 21 de junho, participei também da Intersolar Europa, uma feira que dita as tendências do setor para os próximos anos. 

Um ponto importante a ser destacado é que as inovações apresentadas na Intersolar South America, realizada em São Paulo em agosto de 2023, estão agora sendo consideradas tendências na Europa, como demonstrado na Intersolar em Munique.

Desde 2021, o custo da energia nos países da União Europeia tem aumentado constantemente, devido à pandemia de Covid-19 e ao conflito entre Rússia e Ucrânia. Em resposta, os consumidores europeus estão buscando soluções para reduzir os custos de energia elétrica e diminuir a dependência do gás para aquecimento e processos industriais.

As inovações apresentadas na Intersolar em Munique têm, em grande parte, o objetivo de solucionar esses problemas. Na minha opinião, algumas dessas soluções também podem ser aplicadas no Brasil. Vejamos:

1. Sistemas de Baterias: As novas tecnologias de armazenamento de energia, como por exemplo as baterias de chumbo ácido com maior densidade energética, custo baixo e maior tempo de vida útil, que garantem mais segurança energética e menor dependência de outras fontes para aquecimento e processos industriais. 

2. Baterias Portáteis: baterias móveis e plug and play, permitindo que consumidores sem espaço para gerar sua própria energia possam utilizar energia armazenada, carregadas por módulos flexíveis e portáteis ou pela própria energia da rede, obtida em horários que o custo do kWh é menor.

3. Sistemas de Gestão e Otimização de Energia: Muitos fabricantes de equipamentos apresentaram sistemas que otimizam tanto a geração quanto o consumo de energia, distribuindo cargas prioritárias e aproveitando os melhores preços das tarifas dinâmicas oferecidas pelas distribuidoras.

4. Mobilidade Elétrica: Equipamentos com facilidades de pagamento (meios de pagamento por aproximação) e totens para venda de publicidade.

Desafios Enfrentados e adaptação ao Modelo Alemão

Um dos principais desafios foi entender como o modelo alemão de feed-in tariff poderia ser adaptado ao Brasil, especialmente para os consumidores que optaram pela tarifa branca de energia, que é um sistema de precificação por diferentes tarifas para a energia consumida em diferentes períodos do dia. A diferença nos modelos alemão e brasileiro está na proibição de venda do excedente de energia pelo consumidor no Brasil. No entanto, nosso Sistema de Compensação de Energia Elétrica da geração distribuída permite que o consumidor alugue seu sistema de geração, sendo remunerado por isso, e, ao mesmo tempo, compartilhe o excedente com o locatário do sistema.

Atualmente, a regulamentação da geração distribuída (GD) encontra-se em debates no TCU, na Aneel e no Congresso Nacional, gerando insegurança jurídica para os consumidores que pretendem investir nesse segmento. Esse risco tem impedido o avanço de modelos de negócios criativos na GD.

Outro desafio é a infraestrutura necessária para implementar essas tecnologias no Brasil. Embora o país tenha um grande potencial para energias renováveis, a falta de investimentos nas redes de distribuição e incentivos governamentais pode dificultar a adoção em larga escala.

A experiência de Wildpoldsried mostrou que o envolvimento da comunidade é crucial para o sucesso de projetos de energia renovável. A população local investiu nos sistemas de geração e agora colhe os benefícios financeiros e ambientais. No Brasil, boa parte da população não conhece os benefícios da GD, tampouco outras formas disponíveis de reduzir o custo da energia elétrica, tornando-se o obstáculo intelectual um dos maiores desafios da nossa nação. 

Inovação e Tecnologia e aplicação no Brasil

A inovação tecnológica, como sistemas de baterias e gestão de energia, é essencial para otimizar o uso de energias renováveis. Essas tecnologias permitem uma utilização mais eficiente e econômica da energia gerada, bem como estabilizam as redes de distribuição que, hoje, sofrem como excesso de energia renovável na rede e a baixa demanda.

Políticas governamentais de incentivo do uso de baterias, bem como leilões de energia com sistemas de armazenamento, são fundamentais para promover a adoção dessas tecnologias. A Alemanha serve como exemplo de como regulamentações seguras e incentivos podem impulsionar o setor.

A otimização do uso de energia é uma demanda de todo e qualquer consumidor, independente da nacionalidade, especialmente em horários de pico, onde o custo é mais alto e os riscos de “queda” de energia são maiores. Empresas brasileiras podem explorar o mercado de baterias portáteis para consumidores residenciais e comerciais. 

Segundo pesquisa realizada pela Greener em 2023, dos 49% dos integradores que oferecem sistemas híbridos, 25% realizaram pelo menos uma venda desse tipo de sistema. Isso significa que 12% do total de integradores que responderam à pesquisa concretizaram pelo menos uma venda de sistema híbrido com bateria.

Energia como Serviço, uma revolução do mercado de energia

O conceito de Energia como Serviço (EaaS), fortemente difundido na Europa e nos Estados Unidos, está crescendo no Brasil, com empresas oferecendo soluções que permitem aos consumidores gerar energia solar sem investimento inicial. Esse modelo pode ser expandido para incluir sistemas de gestão e otimização de energia, proporcionando uma solução completa para os consumidores.

A Energia como Serviço é um modelo que troca a visão de "energia como mercadoria" pela ideia de terceirizar a gestão energética. Nesse contexto, os provedores de energia disponibilizam soluções integradas de gerenciamento de energia, abrangendo desde a geração, consultoria, controle por meio de software, até o armazenamento e consumo, tudo oferecido como um serviço.

O modelo de negócios de EaaS transfere a posse dos ativos energéticos do cliente para o fornecedor, alterando os modelos tradicionais de negócios.

Em transações convencionais, os clientes compram produtos e podem adquirir garantias e/ou serviços adicionais por meio de contratos.

Ao adotar um modelo de aluguel/leasing em vez de propriedade, o consumidor é liberado da necessidade de grandes investimentos iniciais, como a compra de baterias ou sistemas de geração de energia solar.

A abordagem "como serviço" garante que todos os serviços complementares, incluindo manutenção e suporte técnico, sejam realizados pelo fornecedor, com os custos incluídos na assinatura.

Esses serviços podem incluir, por exemplo:

  • Tecnologias de fornecimento de energia on-site e off-site
  • Serviços de consultoria e assessoria
  • Plataformas digitais de gestão de energia

O papel do Brasil no mundo e a convergência com os alemães

Esses dias que passei na Alemanha revelou que o Brasil possui um vasto potencial no setor de energias renováveis. O mundo todo tem nos observado. Ouvi muito isso na Intersolar em Munique.

Com políticas adequadas, investimentos em tecnologia e educação, e a adoção de modelos de negócios inovadores, o Brasil pode se tornar um líder global em energia sustentável e de tecnologias. Segundo dados divulgados no segundo semestre de 2023, já somos o país que mais gera empregos nesse setor no mundo.

De acordo com um relatório conjunto da Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA) e da Organização Internacional do Trabalho, o Brasil foi o segundo país que mais gerou empregos no setor de energia renovável em 2022. Foram criadas 1,4 milhão de vagas, colocando o Brasil atrás apenas da China e à frente dos Estados Unidos e da Índia.

A transição para uma matriz energética mais limpa e eficiente não só beneficiará o meio ambiente, mas também proporcionará retornos econômicos significativos para a população e investidores.

Além disso, a parceria estratégica entre Brasil e Alemanha, recentemente renovada, pode ser um catalisador importante para essa transição. A colaboração entre os dois países visa reduzir as emissões de gases de efeito estufa e promover o desenvolvimento de tecnologias como o hidrogênio de baixo carbono, que pode ser produzido no Brasil e exportado para a Alemanha.

O Brasil, com sua abundância de recursos energéticos renováveis, está bem posicionado para liderar essa transformação. A implementação de tecnologias de fornecimento de energia tanto on-site quanto off-site, serviços de consultoria e assessoria, e plataformas digitais de gestão de energia são passos essenciais para alcançar esse objetivo.

Em resumo, a transição para um modelo energético mais sustentável no Brasil não é apenas uma possibilidade, mas uma necessidade urgente que pode trazer benefícios ambientais e econômicos duradouros.

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