Opinião

A interferência do Poder Legislativo nos atos das agências reguladoras

Aqui não se tem por objetivo questionar a legitimidade ou a competência do Poder Legislativo em alterar a estrutura ou as competências das agências reguladoras, mas sustentar que tal debate deva ser feito de forma ampla e técnica

Por Mariana Saragoça

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Em maio de 2022, publicamos o artigo O Congresso Nacional entre a Canetada e a Redução Estrutural das Tarifas de Energia, que destacava a discussão de Projetos de Decreto Legislativo que tinham por objetivo sustar os efeitos de resoluções homologatórias da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) que aprovaram reajustes tarifários anuais de concessionárias de distribuição de energia elétrica.

À época, destacamos que Projetos de Decreto Legislativo – que são atos de competência exclusiva do Congresso Nacional e que teriam por objetivo sustar atos normativos do Poder Executivo que exorbitem o poder regulamentar ou os limites de delegação legislativa – contra reajustes tarifários homologados pela Aneel eram práticas relativamente recorrentes, com a propositura de quase 20 deles entre 2017 e 2021, ainda que nenhum deles tenha sido aprovado.

No mesmo artigo, destacou-se não haver ilegalidade aparente nos reajustes anuais aprovados pela Aneel que pudesse caracterizar exorbitância do seu poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa e que, portanto, tais PDLs caracterizariam indevida intervenção do Poder Legislativo nos atos de competência da agência reguladora.

Ainda que, tal como em todos os outros casos, os referidos anseios do Poder Legislativo quanto aos reajustes tarifários não tenham logrado êxito na forma como propostos, entende-se necessário manter o tema em debate para evitar que ações, por vezes populistas, impactem a discussão técnica e a segurança jurídica que contribuem para o desenvolvimento do setor.

Isso porque, ano após ano, o trabalho técnico e independente de agências reguladoras é objeto de questionamento por parte do Legislativo, chegando ao ponto de, no âmbito da Medida Provisória nº 1.154/2023 – que estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios – ter sido apresentada emenda que tem por objetivo limitar a atividade normativa das agências bem como alterar a jurisdição do contencioso administrativo.

Aqui não se tem por objetivo questionar a legitimidade ou a competência do Poder Legislativo em alterar a estrutura ou as competências das agências reguladoras, mas sustentar que tal debate deva ser feito de forma ampla e técnica.

Especificamente no setor elétrico, embora possa haver questões e entendimentos divergentes acerca da atividade normativa e da atuação da Aneel, há de se reconhecer seu papel fundamental, ao longo de seus mais de 25 anos, para a regulação do setor, para a segurança jurídica e para aplicação de políticas públicas que contribuíram para a atração de investimentos necessários ao desenvolvimento do setor neste período.

Não fosse suficiente, também nos últimos meses, foi apresentado o Projeto de Decreto Legislativo nº 59/2023 que tem por objetivo sustar alguns artigos da Resolução Normativa Aneel nº 1.059/2023, que regulamentou a Lei nº 14.300/2022 que estabeleceu o novo marco legal da micro e minigeração distribuída.

Como sabido, a regulamentação da micro e minigeração distribuída foi objeto de amplo debate setorial nos últimos anos – alguns comentários sobre o tema no artigo O necessário avanço da regulamentação da mini e microgeração distribuída – vindo a ser regulamentada pela Aneel no último mês de fevereiro.

Sobre o tema, vale lembrar que o amplo desenvolvimento da minigeração distribuída, no Brasil, foi possível muito em razão da edição, pela agência, de sua Resolução Normativa nº 482/2012, posteriormente ampliada em 2015 e 2017.

Adicionalmente, ainda que prevista sua revisão ao final do ano de 2019, aguardou-se o “acordo setorial” que culminou na publicação da Lei nº 14.300/2022 para que, enfim, o novo marco legal atendesse os anseios de todos os segmentos.

Ou seja, mais uma vez, há de se reconhecer o trabalho da agência na criação de condições para o rápido desenvolvimento do setor de micro e minigeração distribuída.

Ocorre que, mesmo após ampla discussão setorial, consultas e audiências públicas e a devida regulamentação, mais uma vez, o Poder Legislativo atua no sentido de tentar alterar as decisões da agência reguladora.

Como dito, não se questiona a legitimidade e competência do Poder Legislativo para a propositura de Decretos Legislativos, até mesmo por se tratar de direito constitucionalmente previsto. Da mesma forma, não se pretende avaliar o mérito ou a adequação da propositura do referido PDL nº 59/2023, mas destacar a relevância de que sua discussão seja feita de forma estritamente técnica e com ampla publicidade, tal como as discussões acerca da regulamentação da mini e microgeração distribuída na Aneel foram conduzidas.

No mesmo sentido, é imprescindível que o direito atribuído ao Poder Legislativo seja exercido nos estritos limites definidos pela Constituição Federal, quais sejam, apenas em casos de exorbitância do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa, sob pena de se caracterizar afronta à separação dos poderes e quebra da própria segurança jurídica e estabilidade regulatória necessárias ao desenvolvimento do setor.

Não há dúvidas de que é extremamente relevante a participação do Poder Legislativo nas discussões setoriais, em especial em razão de sua competência exclusiva para legislar sobre energia elétrica e, portanto, contribuir na definição das políticas para o setor.

De todo modo, também é imprescindível reconhecer o trabalho realizado pelas agências reguladoras nos últimos anos, em especial pela Aneel, e garantir sua independência enquanto instituição de estado, suas competências normativas e fiscalizatórias, e sua atuação em prol do equilíbrio do setor elétrico, evitando que interesses políticos ocasionais se sobreponham às discussões técnicas necessárias ao desenvolvimento do setor.

Mariana Saragoça é advogada e sócia do escritório Stocche Forbes, com atuação nas áreas de Direito Administrativo, Infraestrutura e Regulação; Frederico Accon Soares é advogado sênior e sócio do escritório Stocche Forbes, com atuação nas áreas de Direito Administrativo, Infraestrutura e Regulação com ênfase no setor elétrico.

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